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Revista digital sobre o Terceiro Ciclo de Cinema Paraibano, ocorrido no Estado da Paraíba entre os

anos de  1979 e 1985. A revista Bitola-8, orientada pelo professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Pedro Nunes Filho, foi desenvolvida para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - UFPB

Elaborada pelos futuros jornalistas Arthur Morais Jéssica Sales, o trabalho desenvolvido na revista Bitola-8 permitiu explorar três paixões em comum aos dois estudantes: revistas, jornalismo cultural e cinema.

QUEM ESCREVE

Universidade Federal da Paraíba 

Centro de Comunicação Turismo e Artes

Departamento de Jornalismo

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Banca Examinadora: 

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Professor Phd Pedro Nunes Filho

Professor Dr. Bertrand de Souza Lira

Professor Me. José Everaldo de Oliveira Vasconcelos 

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Confira uma seleção de artigos, dessertações e livros online que abordam o Terceiro Ciclo de Cinema da Paraíba.

 

Contrapontos Cinematográficos

com Pedro Nunes 

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Bitola-8: No dia 17 de novembro de 1981 a Oficina de Comunicação, vinculada ao Departamento de Arte da UFPB, realizou a II Mostra de Cinema Independente, que teve sua abertura interrompida pela Censura da Policia Federal. Porque a mostra foi interrompida?

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 Pedro Nunes:  No início dos anos 1980 o Brasil começou a respirar novos ares. As mobilizações e as lutas dos movimentos sociais carregavam esperanças em torno de mudanças principalmente na esfera política. No entanto essa espécie de abrandamento por parte do regime ditatorial brasileiro ocorreu de forma lenta, planejada e meticulosa por parte dos militares. No início dos anos 1980 continuava a censura e a repressão à produção cultural. Não foi tão ostensiva como na década de 1970, designado como “anos de chumbo”. O exercício da censura ainda ocorreu com muita força tanto na esfera da música, do teatro, da imprensa, no mercado editorial dos livros, da televisão e, principalmente, no campo do cinema. Vários filmes ainda foram proibidos por atentados ao pudor ou por serem considerados “subversivos”.

 

Outros sofriam cortes de cenas prejudicando a compreensão da narrativa. A censura também recaia sobre as propostas culturais não comerciais.  Alguns filmes, por exemplo, foram impedidos de circulação ou vetados por uma década. Se alguém contrariasse com alguma exibição poderia ser preso e torturado. Os órgãos repressão da União  estavam sempre vigilantes e acompanhavam todos os movimentos relacionados com a cultura.   O cinema particularmente sempre  incomodou a Ditadura Militar. Vejam o caso do filme  O Pais de São Saruê (1971) do paraibano Vladimir de Carvalho que passou oito anos censurado e só foi liberado para exibição pública em 1979.  

 

O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci só foi autorizado a ser exibido na televisão brasileira no ano de 1985.  A atuação da censura, associada com várias outras formas de repressão e coerção das liberdades individuais\coletivas desencadeavam mecanismos de resistência, protestos, mobilizações, confrontos e até mesmo o desenvolvimento de formas para se burlar a censura federal. Produtores culturais alternativos, realizadores independentes ou mesmo grupos universitários que operavam com criações culturais à margem do circuito comercial, evidentemente se recusavam em submeter as suas criações aos censores que compunham o aparato de repressão da ditadura militar.  Havia uma luta intensa nas universidades que defendia os espaços universitários enquanto territórios livres para a livre manifestação do pensamento, liberdade de criação, circulação de informações e de compartilhamento do conhecimento.

 

Então mesmo com esse “afrouxamento” por parte do regime militar comandado pelo então general Figueiredo, existia ainda repressão e perseguição política. Os órgãos de repressão continuavam ávidos para interferir no espaço universitário e reprimir manifestações que sinalizassem oposição ao regime militar. As universidades sempre se apresentaram enquanto focos de resistência e de engajamento contra ao regime militar. As atividades culturais e mobilizações originárias dos espaços universitários quase sempre eram consideradas “ofensivas” sendo entendidas enquanto provocação aos militares. Então havia esse desejo maquiavélico por parte dos agentes federais no sentido de agirem com o uso da força para desarticular iniciativas que congregavam pessoas que assistiam  filmes, peças teatrais, ou mesmo desarticulações das rodas de conversas identificadas por agentes infiltrados nas universidades. Era algo revoltante, desproporcional e, em algumas situações,  faziam o uso da força bruta, que resultavam em prisões de pessoas totalmente indefesas e contrárias ao regime militar .   A ação da Polícia Federal no caso da II Mostra de Cinema Independente promovida na esfera da Universidade Federal da Paraíba foi um exemplo claro dessas arbitrariedades constantes promovidas pelo regime militar que já perdia as suas forças... mas que continuavam a agir com arbitrariedades. Esses foram os fatos reais vivenciados ainda nos anos 1980 aqui na Paraíba. Precisamos iluminar esses acontecimentos da nossa história para que nunca mais ocorram.

 

A ditadura Brasileira é uma parte de nossa memória.  A ocupação da Policia Federal por ocasião da realização da II Mostra de Cinema Independente  foi algo inadmissível em um estado de democrático de direito. Esse gesto repressivo em reação a uma Mostra que tive o orgulho de coordenar ao lado do grupo de Cinema da Oficina de Comunicação da UFPB representa apenas uma agulha no palheiro.  A  intervenção resultou em repercussão nacional para a Mostra, aumentando o público e gerando manifestações de vários segmentos da sociedade. Sempre digo que esse ataque ou afronta em relação a livre manifestação cultural resultou em uma inserção publicitária gratuita patrocinada pelos próprios agentes federais. Claro, mereceu todo repúdio possível: já pensou no que significa a invasão de agentes policiais armados com metralhadoras, lançando bombas de gás lacrimogêneo e dando tiros para o alto em um recinto fechado lotado que tinha prevista a apresentação de um grupo coral seguido por exibição filmes?  Isso foi uma afronta. Um desrespeito. Não houve qualquer resistência dos presentes. Houve pânico e desespero de pessoas totalmente indefesas. Houve sim, muita indignação ecoada pela imprensa. A II Mostra de Cinema Independente prosseguiu logo no dia seguinte, em outro espaço, e muito mais fortalecida pela repercussão através da mídia nacional e apoio de entidades do audiovisual.   

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Bitola-8: Você considera Closes (1982) um filme divisor desse período? No filme você utiliza um misto de documentário e ficção, porque você optou por gravar o filme desta forma? Pode falar um pouco sobre ele?

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 Pedro Nunes:   Fica difícil para o próprio autor afirmar que Closes foi um divisor de águas desse Terceiro Ciclo de Cinema na Paraíba com a predominância da bitola Super-8. Com distaciamento, na atualidade digo que foi sim. Jomard Muniz de Britto já fez essa afirmação no vídeo Renovatório (2007) de Chico Salles e salvo engano, o Bertrand Lira, também. Em Closes essa questão da homoafetividade aparece de forma aberta, escancarada com a nudez total e afetos explícitos. Há uma dimensão poética que abraça a narrativa. Mas houve também todo um contexto favorável que circunscreve Closes. Muitas pessoas colaboraram em todo seu processo de produção.  Foi o meu quarto filme além de outras experimentações e colaborações em outras propostas audiovisuais. É um filme resultante de muita escuta e determinação por minha parte.   Outros filmes também discutiram a mesma temática com outros enquadres. Há em Closes uma dimensão colaborativa muito forte. Essa espécie de ação colaborativa entre amigos contemporâneos também se repetiu em outras propostas audiovisuais da época.

 

O contexto sociopolítico foi extremamente favorável para Closes. Só percebi depois essa efervescência dos movimentos culturais e atuação dos grupos organizados. Eu estava no meio desse vulcão em chamas, sempre interagindo a minha maneira e sem atropelar meus pares. Então Closes realmente foi uma proposta ousada que elaborei com muito cuidado e seriedade. Foi um momento importante do meu processo de aprendizado com o audiovisual.  Digo ainda que  em seu contexto de época Closes foi um filme ousado quanto a sua construção narrativa. Os depoimentos foram costurados em forma de entrechoques, ou seja, um depoimento que na sequência  podia se contrapor ao outro. Esse modo de abordagem temática fez com que o filme pudesse ser assimilado até mesmo por conservadores. A própria estrutura narrativa do filme incorpora elementos do documentário, do jornalismo e do gênero ficcional. Diria que Closes foi  movimentado por muita curiosidade por parte do público e pelas discussões quase que obrigatórias que ocorriam após cada exibição.  Outro ponto forte do filme foi a dinâmica de circulação e a própria repercussão do filme que ganhou eco por parte da imprensa.  

 

A crítica, a produção de artigos, notas destacando o poder de mobilização do mesmo e o burburinho dos comentários auxiliaram no processo de ressignificação do filme. Com as criticas, artigos e posicionamentos de especialistas, Closes adquiriu nova vida. Esse movimento de interpretação que puxava o debate para questões sexualidade ampliava cada vez mais o interesse pelo filme. Closes ganhou repercussão além da Paraíba. Foi exibido em vários estados brasileiros através de convites de Cursos de Comunicação, Cineclubes e Grupos organizados.

 

O interessante é que todas essas exibições eram seguidas por debates com especialistas de várias áreas inclusive do cinema. Recordo que em Manaus estava presente na plateia o cineasta Djalma Limongi Batista que comentou o filme. No Rio, a exibição foi direcionada por Silvio Tendler. Em São Paulo, as sessões promovidas pelo Cineclube Somos contou com as presenças de Jean Claude Bernardet, Celso Favaretto, Nestor Perlongher, Edward MacRae , Glauco Mattoso entre outros. Em Buenos Aires,  as exibições de Closes foram organizadas pela cineasta Maria Luisa Bemberg  e em Rosário as sessões ficaram ao encargo do cineasta Mario Piazza.  Então considero extremante interessante essa itinerância de Closes mobilizando plateias e acendendo o debate sobre a sexualidade e a homossexualidade.  Esse circuito associado ao processo de mobilização foi muito interessante para consolidar Closes enquanto um filme com traços diferenciais quanto ao tratamento temático e narratividade.

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Por fim, Closes faz a mistura de gêneros, ou seja, entremescla o documentário com a ficção. Esse foi um mote trabalhado pelos adeptos do Cinema Indireto. Depois de Closes, segui com o filme a tiracolo para uma vivência acadêmica em São Paulo com a finalidade de refletir sobre o Terceiro Ciclo de Cinema da Paraíba na Universidade Metodista de São Paulo.  O tempo é dinâmico e nos transforma.

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FONTE 

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NUNES, Pedro. Entrevista  concedida aos autores. João Pessoa, 17 de maio. 2016

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Bitola-8: O que você entende por Cinema Direto?

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 Pedro Nunes:   Vou repetir várias vezes o termo Cinema Direto para poder circunscrevê-lo em seu contexto merecido. Entendo que o Cinema Direto é um modo de abordagem que envolve os diferentes processos de construção de narrativas fílmicas. Esse método de estruturação possui uma faceta de aderência ao real. Nessa vertente de construção significante a perspectiva é de que o realizador interfira o mínimo possível na dinâmica dos acontecimentos que estão sendo gravados. Trata-se de uma vertente que prioriza a captação da imagem e do som pela via da captação direta. Nesse procedimento de construção fílmica há, sem dúvidas, graus de subjetividade, mas a característica principal do que convencionou-se chamar de Cinema Direto é direcionar a câmera com a interferência mínima possível nos registros, depoimentos ou entrevistas. 

 

Esse é o pressuposto ou o método de investigação do Cinema Direto onde hipoteticamente há um recuo do realizador. Sabemos de antemão que o realizador ou cineasta ao utilizar a câmera enquanto aparato de mediação da realidade opera com seleções, enquadramentos, filtros culturais etc. O próprio processo de montagem\edição de qualquer filme, vídeo ou audiovisual consiste em manipular, ordenar e construir sentidos com elementos significantes que denominamos de imagem e som.  Então, o Cinema Direto com suas inúmeras vertentes, carrega também essa dimensão da manipulação visto que o realizador opera com escolhas, recortes subjetivos de aspectos da realidade e direciona as suas construções narrativas. Percebo ainda que Cinema Direto opera, também, com a perspectiva da etnografia no sentido de que filme ou vídeo possa funcionar com instrumento de registro e de pesquisa de determinadas situações da realidade sempre fazendo o registro do som sincronizado com a imagem. 

 

Os documentários, em geral, carregam características do Cinema Direto, por apoiarem-se em uma modalidade de escrita narrativa que revela nuances da realidade escolhida. O Cinema Direto difere, mas também possui elos de ligação com o Cinema Verdade. Cronologicamente o Cinema Direto sucede o Cinema Verdade e por esse contexto de época está associado ao processo de miniaturização e desenvolvimento das câmeras cinematográficas cada vez mais compactas e leves tanto em 16mm num primeiro momento e logo depois em 8mm. Nos anos 1960 o procedimento considerado inovador pelo Cinema Direto era muito simples, as pessoas filmadas concediam depoimentos diretos, dialogavam com o próprio realizador\câmera e presumia-se pouca interferência por parte da equipe.  O pensador Edgar Morin e o cineasta Jean Rouch tiveram um papel essencial no sentido de dimensionar o Cinema Direto nessa perspectiva da antropologia do cotidiano que se debruça sobre as socialidades complexas do tempo presente que se converte em memória e história.  Em tese as construções narrativas do Cinema Direto carregam a marca da intimidade em relação ao que está sendo filmado e, ainda, incorporam e reinventam as características do gênero documentário.

 

Na época de seu surgimento o Cinema Direto representou uma espécie de ruptura em relação aos cânones então estabelecidos do cinema documental. Destaco que há apenas fios que interligam as distintas propostas desenvolvidas na França, Canadá, Brasil ou Estados Unidos entendendo assim que o Cinema Direto não pode ser compreendido enquanto proposta que mantém coerência em seu todo. Enquanto recurso reflexivo que privilegia a imagem e o som o Cinema Direto é por assim dizer contraditório por natureza. Apesar da sua importância histórica e contextual há vozes dissonantes em relação a essência do que é Cinema Direto. No Brasil vivenciamos muitas controvérsias em torno dessa vertente do Cinema Direto.  Glauber Rocha foi um crítico voraz exatamente em uma fase em que no Brasil tomava corpo o movimento de Cinema Novo. Essas vozes discordantes é o que na atualidade considero importantes. Já fui um crítico do Cinema Direto e depois fui percebendo que nos meus filmes documentais produzidos no princípio dos anos 1980 havia elementos do Cinema Direto. Então parafraseando e atualizando Edgard Morin diria que essas narrativas audiovisuais elaboradas com a perspectiva do Cinema Direto funcionaram enquanto possíveis espelhos de realidades enxergadas e problematizadas pelas equipes que produziram narrativas que receberam esse rótulo ou etiqueta que chamamos de Cinema Direto.

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Já que trouxe o Edgard Morin para nossa discussão, quero citar o filme Crônica de um Verão (1961) do próprio Morin e de Jean Rouch que funciona como matriz histórica do Cinema Direto.  Nesse filme identificamos traços conceituais do que propriamente seja o modo de construção do Cinema Direto.  A partir desse filme e de outras contribuições audiovisuais posteriores, a vertente do Direto passou por variantes e transformações ao longo dos anos 1960 em várias partes do mundo.  Fica bem claro a falta de consenso em torno dessa vertente audiovisual. É possível afirmar que Cinema Direto é heterogêneo do ponto de vista conceitual e do ponto de vista das próprias realizações que incorporam marcas criativas e filtros culturais por parte de cada realizador. Nem sempre a marca desses filmes é exclusivamente documental. Em alguns trabalhos mais elaborados observamos que a fronteira entre o documentário e a ficção é tênue. Documentário e ficção se entremesclam. Há documentários encampam naturalmente a ficção ou outros gêneros.  No entanto é importante frisar que a tecnologia cinematográfica dos anos 1960 ainda estava fundada no cinema de base fotoquímica realizado com películas e montagem em moviolas.  Os anos 1970 serão marcados pelo processo de miniaturização da bitola em Super-8 com o surgimento das câmeras compactas, visores e coladeiras para montagem dos filmes.

 

A bitola Super-8 que se “popularizou” ao longo dos anos 1970 se apresentou enquanto ferramenta extremamente eficaz para o processo de produção de filmes tendo em vista a praticidade das câmeras, a diminuição dos custos de produção, o crescente processo de miniaturização dos equipamentos de cinema e facilidades no processo de revelação. Diria que a bitola Super-8 foi, também, uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento de propostas voltadas para Cinema Direto e outras formas do cinema considerado não direto em todo mundo. A Paraíba não ficou fora desse contexto com a implantação de um atelier de Cinema Direto no Núcleo de Documentação Cinematográfica da UFPB efetivado através de convênio com a Associação Varan logo no princípio dos anos 1980. É nessa década que também constatamos um descenso no processo de produção de filmes em Super-8 e o crescimento da feitura de vídeos. Nos anos 1980 o processo de produção de audiovisual independente se efetiva através do registro pelo sistema de codificação eletrônica e nos anos 1990 a emergência dos processos digitais.

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Mas é importante destacar que a Associação Varan - com seus Ateliers marca presença em vários países realizando oficinas de formação e capacitação de realização audiovisual envolvendo roteiro, montagem etc . A entidade teve um papel decisivo nessa linha do Cinema Direto aqui na Paraíba, no princípio dos anos 1980, no processo de formação de novos cineastas e mesmo de cineastas que já atuavam profissionalmente. Além das oficinas que aconteceram na UFPB via Núcleo de Documentação Cinematográfica vários alunos selecionados e profissionais puderam realizar estágio na França formando uma geração calcada nesse ideário do Cinema Direto. Alguns desses integrantes das oficinas de formação transgrediram sutilmente o ideário do Cinema Direto através de seus filmes ou realizações.

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Bitola-8: Como se deu o processo de organização da Mostra de Cinema Independente? Como os filmes eram escolhidos? De onde vinham os recursos financeiros? Onde a Mostra ocorria?

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 Pedro Nunes:  A movimentação em torno do processo de produção de filmes na Paraíba esteve concentrada de forma não exclusiva em torno das Universidades Federal da Paraíba e Regional do Nordeste e de outras iniciativas de cunho individual. As Mostras sinalizaram para efetivação de uma proposta, que congregou parte significativa dessa produção audiovisual melhor elaborada do estado da Paraíba, além de reunir propostas e realizadores de outros estados da região nordeste.

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Então, além de possibilitar uma ampla visibilidade de nossa própria produção cinematográfica, essas Mostras de Cinema findavam por realmente propiciar contatos com realizadores nordestinos e suas obras. Ter filmes agrupados e encaixados por tema ou construção poética significava e também por estar mobilizado em torno do aprendizado de um cinema de luta com características de resistência e de insubordinação em relação ao regime militar.  Alguns desses filmes eram escolhidos por um trabalho de curadoria a exemplo de Jomard Muniz de Britto, que se encarregava de selecionar as obras de destaque de Pernambuco e que já possuía uma tradição de cinema e também se destacava com um ciclo de filmes em Super-8. Antecedo o nosso ciclo aqui da Paraíba. De Pernambuco exibimos filmes cujos realizadores já se destacavam por suas obras bem elaboradas como as produções de Paulo Cunha, Geneton Moraes Neto, Fernando Spencer, Celso Marconi, Amin Stemple, Rucker Vieira, Paulo Bruscky entre outros.

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Outros estados enviavam seus filmes, representantes ou estudantes universitários que eram acompanhados por seus professores. O contato com essa produção e com vários de seus realizadores ou produtores funcionava como oxigênio para incrementar a nossa produção local. Evidenciei aqui o estado de Pernambuco que sempre dispôs dessa força criativa no campo audiovisual até na atualidade, cujos realizadores tiveram seus trabalhos selecionados e apresentados para as Mostras esse período do ciclo superoitista.

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As mostras sempre dispunham de representantes de vários estados brasileiros com seus realizadores inquietos. Precisávamos de novos espelhos para redirecionarmos a nossa própria produção audiovisual. Buscávamos novas referências e eu particularmente estava interessado através dessas Mostras, em conhecer e revelar essa multiplicidade da produção audiovisual brasileira. Isso tinha um eco para atrair e envolver pessoas, sobretudo alguns dos jovens realizadores que ainda dispunham de pouca firmeza para encarar os desafios e dificuldades a serem enfrentadas com um governo autoritário que operava com intimidações. Haviam muitas situações de enfrentamento no seio da própria UFPB. Ressalte-se que também existiu muito apoio. Tratava-se de uma ação coletiva tendo em vista que as Mostras tinham que ser legitimadas pela esfera institucional da própria UFPB. Caso contrário seria difícil.

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Enfrentamos entraves de setores mais conservadores da UFPB. Falo isso porque estive sempre na linha de frente dessas Mostras. Maturávamos cada mostra no decorrer de todo ano. Tínhamos que de forma até ingênua resistir para que cada Mostra pudesse realmente acontecer. De certa forma a condução dessas Mostras pela via da Oficina de Comunicação, órgão laboratorial vinculado ao Curso de Comunicação facilitava um pouco mais o processo.

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Através da Oficina e de um pequeno grupo conseguíamos abrir os caminhos para os nossos planos de vôos que foram as mostras de Cinema Independente.  Então tínhamos dificuldades de infraestrutura e dificuldades financeiras para materializar essas Mostras que mobilizavam realizadores, filmes, cineclubes de todo Nordeste e um publico imenso. Cada Mostra tinha o seu publico assegurado e cada vez mais ampliado. Os pequenos detalhes eram previstos e outros escapavam. Os filmes vinham por Correios ou até mesmo por meio de lotes de filmes que chegavam da distribuidora independente Dinafilmes que trabalhava em parceria conosco cedendo filmes sem cobrar taxas de aluguel. Então é possível perceber que havia um trabalho e mobilização e articulação com entidades, instituições da época como a Embrafilme que enviava a Revista Filme e Cultura para o público participante.

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Esse intercâmbio entre realizadores, entidades e filmes implicava em fortalecimentos recíprocos e criavam uma esfera de resistência e organização dos próprios cineastas. As Mostras tinham essa dimensão interestadual e recebia participantes de vários estados brasileiros. As quatro Mostras aconteceram no período de 1980 a 1984 com apoio de instâncias da UFPB e foram realizadas em espaços da UFPB e da Associação Paraibana de Imprensa.  Esse período foi  marcado por fortes repressões no campo da cultura e da política, atentados a bomba em bancas de jornais e movimentos em prol das eleições diretas para a presidência da República culminando com a campanha das “Diretas já”.

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Repressões por parte da Policia Federal foram constantes em todo Brasil nesse período sendo que no ano de 1981, por ocasião da abertura da II Mostra de Cinema Independente, agentes federais invadiram o espaço de realização da referida Mostra de Cinema (Ex Auditório da Reitoria e atual prédio do INSS) lançando bombas de gás lacrimogêneos e intimidação dos presentes com metralhadoras em punho. Esse episódio gerou repercussão nacional em toda imprensa brasileira. Várias entidades do audiovisual se manifestaram expressando apoio, instâncias do legislativo se posicionaram contra as arbitrariedades, cineclubes e organizações sociais emitiram nota repúdio em vários pontos do país. No dia seguinte a II Mostra de Cinema Independente prosseguiu em outro espaço da UFPB (Teatro Lima Penante) com maior público e com muito mais força em termos de resistência. João Silvério Trevisan, diretor do filme Orgia ou o homem que deu cria (1970), ministrou curso sobre Cinema Marginal para uma platéia ávida em compreender o cinema enquanto instrumento para se pensar as complexidades do Brasil e ainda o cinema enquanto instrumento da cultura para se produzir cultura de resistência.

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Pedro Nunes é professor do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e durante década de 1980 foi uma figura atuante no cenário cinematográfico paraibano.  Autor de filmes importantes no Terceiro Ciclo de Cinema da Paraíba,  como Gadanho (1979), em pareceria com João de Lima; Contrapontos (1980); e Closes (1982). Em sua dissertação de mestrado Violentação do Ritual Cinematográfico – Aspectos do Cinema Independente (1988), o professor aborda detalhadamente o terceiro surto de produções cinematográficas da Paraíba, com predominancia de películas em Super-8. 

 

Considerado um dos cineastas mais relevantes do referido período, ele foi responsável pela organização das Mostras de Cinema Independente, que possibilitaram a exibição de filmes alternativos, que não tinham espaço nos circuitos comerciais.

 

Na entrevista concedida à revista Bitola-8, o professor expôs seu ponto de vista sobre temas como: cinema indireto, sexualidade e censura.

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Bitola-8: Na sua dissertação de mestrado, que trata sobre o Terceiro Ciclo, no capítulo IV, você afirma que o movimento superoitista na Paraíba estava “em pleno vapor”. No entanto, no resto do país a produção está enfraquecida. Além disso, no mesmo ano, a Kodak decreta falência do Super-8. Isso seria reflexo do atraso tecnológico paraibano?

 

 Pedro Nunes:  Em se tratando de regiões distintas (Sul e Norte ou Nordeste e Sudeste) temos que assinalar a ocorrência das diferenças existentes principalmente no plano econômico quanto ao acesso aos bens de consumo e, principalmente, aquisição de bens tecnológicos. Há um destaque na pergunta que enfatiza a “falência do Super-8” e “atraso tecnológico” na Paraíba referente às décadas de 1970 e 1980.

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O contexto sócio-técnico da época possibilitava essas fissuras ou relações paradoxais em que o eixo “sul maravilha” desfrutava da primazia do desenvolvimento econômico e, consequentemente, usufruía das conquistas e desenvolvimentos tecnológicos seja no campo audiovisual ou mesmo em outras áreas da indústria, agricultura ou comércio. Essas disparidades regionais, principalmente no campo do desenvolvimento econômico, eram muito mais plausíveis em se tratando das regiões Norte e Nordeste.

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Essa situação esteve mais agravada nas décadas de 1950 e 1960 quando houve a intensificação do fluxo migratório das regiões Norte e Nordeste para o Sul e Sudeste. A posse ou acesso às tecnologias se materializavam com atraso. Esse cenário mudou radicalmente. Então vou me amparar no presente para poder responder a pergunta que se refere historicamente a um contexto passado.

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A nossa contemporaneidade é atravessada pela lógica do digital. O cinema, o vídeo, a fotografia, a holografia, a televisão e os sistemas hipermídia são essencialmente digitais. Esses sistemas digitais interconectam-se com outras lógicas de reprodutibilidade designadas eletrônica, mecânica, ou mesmo de cunho artesanal. O digital possibilita esses trânsitos híbridos, transterritoriais, ubíquos e rizomáticos com a proeminência do tempo real e da simultaneidade das ações que ocorrem em espaços e tempos distintos.

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Diferentemente de outras décadas, vivenciamos na atualidade as temporalidades liquidas. Acessamos e produzimos constantemente narrativas fluídas e descentradas. Nosso tempo atual é marcado pela velocidade, instantaneidade, conectividade e por formas inusitadas de colaboração. As redes sociais (abertas ou fechadas) estão cada vez mais entrançadas por particularidades, processos de convergência, colaborações interativas e misturas que transcorrem de forma simultânea. Vivemos sob a prevalência de uma cultura digital. Os acessos aos conteúdos de informação e de conhecimento estão cada vez mais amplificados.

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Os sujeitos que interagem no mundo digital compartilham e, também produzem informações simultaneamente. As mídias digitais incorporam invenções complexas a exemplo dos aplicativos para dispositivos móveis, agentes inteligentes e outros. 

 

Santaella nomeia esse momento em que há a proeminência do digital enquanto paradigma pós-fotográfico hibrido. Essa é a lógica da nossa sociedade em rede cujos pilares estão assentados na complexidade das interconexões digitais.       

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A nossa era digital é materializada através de fluxos de informações, tempo real, aumento da capacidade de armazenamento, filtros direcionados pelo usuário, acessos aleatórios dentre outras possibilidades.  Na atualidade vivenciamos essa lógica que dialoga com outras lógicas graças aos avanços do conhecimento, deslocamentos da ciência, conquistas tecnológicas além de um amplo com a oferta de dispositivos móveis arrojados. Avançamos de certa forma em relação ao cinema de película. Comparativamente, a realidade é outra quando recuamos no tempo. Os filmes ou produtos relacionados ao mercado audiovisual são pensados e materializados para ambientes multiplataforma. Determinadas cenas de filmes ou séries podem ser gravadas com a utilização de drones. Isso representa uma mudança no modo de produzir filmes. Os drones já são realidade na Paraíba. Por estratégia mercadológica um determinado filme americano pode se lançado simultaneamente no Brasil, Japão, Holanda e Israel.

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Há regras de mercado que atravessam fronteiras. Aplicativos ou quaisquer produtos tecnológicos podem ser adquiridos sem muita diferença de tempo entre um continente e outro.  A lógica digital é então permeada pela velocidade, acessos rápidos e instantaneidades. Dos anos 1970 e 1980 até a atualidade constatamos mutações das tecnologias e transformações. Então esse abismo entre uma região e outra era bem mais visível.  É aí que se configurava atraso quanto ao acesso das tecnologias de cinema. Hoje essa realidade é impensável. O tempo é dinâmico. Vivenciamos na atualidade outras formas de atraso que se distinguem do que foi considerado “atraso tecnológico” quanto à incorporação do Super-8 por realizadores do Terceiro Ciclo de Cinema na Paraíba.

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Bitola-8: Em relação à temática, porque os primeiros filmes do Terceiro Ciclo deram preferência a registros da realidade paraibana?

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 Pedro Nunes:  Digamos que os primeiros filmes do Terceiro Ciclo confirmaram a tradição de cinema documental que já vinha sendo desenvolvida pelas gerações anteriores principalmente a geração de realizadores que foi contemporânea ao Ciclo Aruanda.

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Então, o próprio contexto sociopolítico da época exigia esse posicionamento de certa forma mais engajado. É uma fase de repressão política, censura aos sistemas de comunicação, tolhimento das manifestações artísticas e mobilizações contra o governo.

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Nesse período temos o congresso de reabertura da União Nacional dos Estudantes (UNE), Movimento pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, libertação de presos políticos e lideranças estudantis, movimento contra a tortura entre outros. Era natural que esse envolvimento político ocorresse de forma espontânea em vários setores inclusive das artes e do próprio cinema. Aqui na Paraíba os filmes dessa época retratam esse período conturbado da realidade brasileira e findam por expressar e registrar os próprios problemas dessa realidade conflitante da Paraíba.

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Além desse viés de nosso quadro político, os realizadores (as) mergulharam na sua própria realidade local e regional produzindo filmes que espelham e traduzem esses conflitos da realidade paraibana. Pior seria estar alheio a esses problemas, o aprendizado inicial envolvendo o cinema ocorre com a realização de filmes documentários, em sua maioria. Há exceções. Além de registros, esses filmes são memórias, documentos sonoro-visuais ou retratos dinâmicos de nossa realidade Paraibana.

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