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Confira uma seleção de artigos, dissertações e livros online que abordam o Terceiro Ciclo de Cinema da Paraíba.

Revista digital sobre o Terceiro Ciclo de Cinema Paraibano, ocorrido no Estado da Paraíba entre os

anos de  1979 e 1985. A revista Bitola-8, orientada pelo professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Pedro Nunes Filho, foi desenvolvida para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - UFPB

Elaborada pelos futuros jornalistas Arthur Morais e Jéssica Sales, o trabalho desenvolvido na revista Bitola-8 permitiu explorar três paixões em comum aos dois estudantes: revistas, jornalismo cultural e cinema.

QUEM ESCREVE

Universidade Federal da Paraíba 

Centro de Comunicação

Turismo e Artes

Departamento de Jornalismo

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Banca Examinadora:

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Professor Phd Pedro Nunes Filho

Professor Dr. Bertrand de Souza Lira

Professor Me. José Everaldo de Oliveira Vasconcelos 

 

JOMARD MUNIZ DE BRITTO um livre pensador a serviço do cinema e da cultura 

por, Pedro Nunes 

Foto: Fred Jordão

Entrevista concedida em 06 de Outubro de 1985

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O que me fez amigo de JMB foi nossa comum paixão pelo cinema, isso já faz dez anos (em 1956, portanto), na decente Recife. Depois, nosso desencontro de temperamentos criou compensações: JMB veio escrever crítica de poesia numa revista literária que eu dirigia em Salvador, depois veio mesmo para a Bahia, onde agiu com brilhantismo e polêmica nas rodas jovens das artes e letras locais. E assim foi, se revelando palmo a palmo: o crítico de cinema era professor de filosofia, o teórico de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista era professor e o professor sambista, outra vez no teatro! Fascinante timidez evoluindo por meandros táticos, aqui e ali exercendo sua função precisa, consequente. Outra coisa que me fascina em JMB é a sua desaristocratização [...]. Sua erudição é diluída no seu grande interesse pela vida, sobretudo pela vida que o cerca, a que vive nos inesperados caminhos de hoje.
 

Paulo Cunha, em A pesquisa cultural nas margens: universidade, vanguarda, periferia, faz a seguinte observação sobre a produção conceitual de Jomard Muniz de Britto:
 

 

 

 

 

 


 
 

 

Jomard Muniz de Britto é um militante despojado que maneja com ideias inovadoras no campo da produção de conhecimentos e de sua produção cultural. Age e pensa em ritmo de ruptura, confrontos e diálogos. Pode-se dizer que a sua condição de ser revela uma pessoa avessa às convenções, aos rituais e aos protocolos. Integra esses protocolos, mas prefere as dobras, as margens, os paradoxos, a periferia e os percursos errantes. A sua produção intelectual reflete essas contradições e conflitos de um Brasil utópico em busca de novas identidades: “O Brasil não é meu país, é o meu ABISMO”, afirma. Essas posturas pensamentais e performances Jomardianas geram atritos, colisões e promovem a curiosidade. Desaguam e se espraiam em toda sua produção conceitual e fazem do humano pensador Jomard Muniz de Britto uma pessoa amada e odiada por proclamar o respeito às diferenças, por adotar posturas contra as farsas políticas, os valores morais, a hipocrisia social e as imposturas acadêmicas.
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Jomard Muniz de Britto é por natureza própria um protagonista da cena cultural, polêmico, que se estrutura sob o paradigma da ousadia. Encampa outros adjetivos qualificativos. Essa irreverência enquanto postura existencial de vida contra o que sempre denominou de BURROcracia não impediu que ocupasse cargos públicos de destaque, a exemplo de diretor da Fundação de Cultura da Cidade do Recife ou, ainda, a sua atuação como diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco.


Seus textos, produções culturais e legados poéticos ressignificam a vida ao valorizar o contraditório, as posturas libertárias e os novos arranjos estéticos que violentam as construções narrativas mais tradicionais.
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Em um
AUTORRETRATO verbal, Jomard  Muniz  de  Britto  relata  o  seguinte: “Eu sou sobrevivente da Bossa Nova,  pra mim,  a modernidade surgiu na Bossa Nova e corresponde ao Cinema  Novo...”.
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Em
1964, ano de instauração do Golpe Militar Brasileiro, Jomard Muniz de Britto lança Contradições do Homem Brasileiro, sendo logo em seguida o livro proibido, tempos depois, o autor preso. Na condição de professor da Universidade Federal da Paraíba respondeu a um inquérito policial em decorrência de uma palestra que teve como tema o AMOR.
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Autor de uma vasta obra literária destacando-se:
Do Modernismo à Bossa Nova (1966), Inventário de um Feudalismo Cultural (1979), Terceira Aquarela do Brasil (1982),  Bordel Brasilírico Bordel (1992),  Arrecife de Desejo (1994) e Atentados poéticos (2002), entre outros.
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Glauber Rocha, ao prefaciar Do Modernismo à Bossa Nova (1966), reeditado pela Civilização Brasileira em 2009, nos traça um perfil afetuoso que revela o amplo espectro criativo de Jomard Muniz de Britto. Glauber Rocha assinala o seguinte:
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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No campo da produção audiovisual, a obra de Jomard Muniz de Britto é igualmente perturbadora e mordaz. Em pleno auge de repressão do regime militar, começa a produzir a partir do ano de 1974, filmes na bitola Super-8.  A sua produção audiovisual em Pernambuco é constituída por 28 filmes irreverentes ou por assim dizer, desestabilizadores. Destacamos alguns desses títulos: Ensaio de androginia (1974), Esses moços, Pobres moços (1975), Alto nível baixo (1977), O palhaço degolado (1977), Inventário de um feudalismo cultural nordestino (1978), Jogos frugais frutais (1979) e Jogos Labiais Libidinais (1979).
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Em
1980, a ação que tramitava na Justiça garantiu a Jomard Muniz de Britto o direito de reintegração à UFPB. A partir daí passa a compor o quadro de docentes do então Departamento de Artes e Comunicação, ministrando aulas no Curso de Comunicação Social.  O Brasil desde 1978, em plena vigência do regime militar, se articulava a partir de grupos organizados em favor da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.
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A presente entrevista com Jomard Muniz de Britto, realizada no dia
06 de junho de 1985, retrata esse período de vivência intensa do autor em termos da efervescência cia cultural que forneceu suporte para a construção do Terceiro Ciclo de Cinema na Paraíba. Jomard Muniz de Britto foi uma das figuras de destaque desse movimento por conta de sua sólida formação intelectual, produção de filmes Super-8, participações em seminários, debates e posicionamentos na imprensa. Ele integrou a segunda geração de cinema paraibano, sobretudo com sua produção literária, fazendo uma ponte entre João Pessoa e Recife e atuou de forma ativa junto aos protagonistas do surto de produção audiovisual ocorrido na Paraíba de 1979 a 1983. Como contra resposta ao Cinema Direto, Jomard Muniz de Britto ajudou a criar o Núcleo de Cinema Indireto, estimulou a escritura de manifestos e produziu três filmes na bitola Super-8 que são considerados basilares no contexto de uma produção audiovisual na Paraíba, visto que apresentam marcas de experimentação e transgressão temática envolvendo a sexualidade: Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba, Masculina, Feminina Neutra (1982).
 
No ano de
2007, a Universidade Federal da Paraíba outorgou o título de Professor Emérito a Jomard Muniz de Britto como forma de reconhecer a sua relevante produção acadêmica prestada à ciência, à cultura e à instituição.
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Na presente entrevista Jomard Muniz de Britto levanta questões conceituais sobre o cinema, destaca as iniciativas regionais de
produção audiovisual, põe em relevo o papel da Universidade Federal da Paraíba, evidencia o contexto de época que circunscreve o Terceiro Ciclo de Produção Audiovisual na Paraíba, levanta os conflitos em torno do Cinema Direto e do Cinema Indireto, fala dos filmes onde a sexualidade é posta em debate, critica as ações da censura no contexto da ditadura militar e sinaliza apontando os principais desafios quanto à ausência de uma infraestrutura necessária para a produção audiovisual na Paraíba. A entrevista inédita integra o corpo da dissertação de mestrado, intitulada Violentação do ritual cinematográfico: Aspectos do cinema independente na Paraíba - 1979 -1983, defendida no ano de 1988 na Universidade Metodista de São Paulo.
 

Pedro Nunes: O que você considera como Cinema Independente e Cinema Alternativo? Você faz alguma distinção entre esses dois conceitos?
 
 JMB:  Associo muito esse problema de Cinema Independente ou Cinema Alternativo ao problema da cultura de um modo geral. Fala-se muito de Poesia Marginal, a Geração de Mimeógrafo, que foi em 70, chamada geração 70, quer dizer, um bocado de poetas, escritores num sentido mais amplo, mas preponderantemente poetas, que com dificuldade de acesso às grandes editoras, começaram a furar o circuito de divulgação dos seus trabalhos, através de uma produção independente. Eles próprios, através de recursos artesanais - mimeógrafo - iam divulgando seus trabalhos. Havia uma produção. Tem a tese interessante chamada Retrato de Época, que afirma de início: era uma produção que estava ligada a grupos, como Nuvem Cigana, Frenesi, quer dizer, poetas, cada um com sua característica própria, mas que se agrupavam. A produção independente surgiu por uma necessidade de expressão do pessoal, e de furar o bloqueio das editoras. Todo o circuito, tanto a produção como a difusão em si, iam aos bares vender seus livros, para as portas de teatro, aos lugares onde tinha um público, que eles achavam que tinha identificação com essa proposta de trabalho.

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O cinema que foi feito na década de 70, no nosso caso, sobretudo nos meados de 70, que se pode chamar de Produção Independente ou Alternativa (esses rótulos são muito questionáveis) que se coloca dentro dessa produção mais ampla da cultura brasileira alternativa, marginal ou marginalizada dos grandes circuitos, das grandes editoras, das grandes produtoras, uma forma de furar  esse bloqueio. Poesia Marginal é uma poesia que se fez à margem, ela foi editada à margem das grandes editoras, marginal neste sentido, ou alternativa, com circuito de distribuição ou de consumo, todo o elo da comunicação desde a produção até o consumo, se é que se deve ter um público diferente, uma alternativa diferente para aquela “produção industrial”, eu diria que uma coisa mais de um certo resíduo de coisa artesanal. Na época da censura muito forte, essa “geração mimeógrafo” na literatura... significava, também, um confronto, uma “guerrilha cultural” diante das tremendas frações da censura.
 

Pedro Nunes: Quer dizer que você situa o Cinema Independente dentro desse contexto mais amplo, com outros movimentos, da poesia, teatro. Então, qual a relação de seu trabalho com esses conceitos que você teorizou de uma forma mais ampla, como é que você associa seu trabalho com...
 
 JMB:  As peculiaridades de meu trabalho ou particularidades eu já procuro um pouco justificar, no caso de carecer justificativa, pelo fato de eu ser professor de Comunicação, eu acho que há um certo estímulo para os próprios alunos com os quais eu trabalho, de que o professor não apenas teorize ou discuta problemas de comunicação, mas que ele também se exercite através dos meios de comunicação. Eu gostaria muito de fazer programas de televisão, mas não tenho acesso à televisão; eu participei um pouco de entrevistas de televisão, até como entrevistador convidado da Globo durante algum tempo em que entrevistei muita gente. Para mim surge como necessidade desse comprometimento didático, de que o professor deve também mexer com os meios de comunicação, e o professor, à medida que faz coisas fracas, também, coisas criticáveis, e isso tudo mostra que ele está se desmistificando também e que os alunos achem que se o professor faz um filme ele também pode fazer. Acho que é dentro desse espírito muito pedagógico.

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Agora, a coisa ao mesmo tempo extrapola a didática, a pedagogia. Eu sempre fui muito voltado para o problema dos audiovisuais, eu me lembro, teve uma época em que eu dava todos os meus cursos baseados em episcópio e pegava músicas, colagens... e eu me lembro de uma aluna que participava de um curso meu na Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco e disse: “Isso parece Godard, essas montagens que você faz”. Eu cheguei ao cinema através de um trabalho audiovisual, música e colagens, uma montagem que eu fazia com episcópio, eu treinava muito em casa para que houvesse a coincidência do ritmo e da música com aquelas imagens que eu mesmo projetava. Eu achei esse encaminhamento de chegar ao cinema da década de 70, já que estava desligado desde fins de 50... época dos debates dos filmes, cineclubismo, etc. É uma motivação didática ligada a essa paixão que eu tenho pelo audiovisual.
 
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Pedro Nunes: De 1978 a 1983 nós temos 55 filmes realizados na Paraíba, em sua maioria na bitola Super-8 e alguns no formato 16 mm.  A que você atribui esse surto de realizações?
 
 JMB:  São tantos fatores. Primeiro a necessidade de retomar uma própria produção que acabaria sendo pioneira na época do Cinema Novo. Isso sempre ficou, apesar de muitos cineastas paraibanos terem ido radicar-se no centro-sul do país, mas ficou dentro da ambiência cultural o desejo de retomar essa linha criativa, dessa produção criativa do cinema. Esse seria um dos elementos, outro, as Jornadas Cinema em Salvador tinham  um  efeito de demonstração... assim você via as produções que estavam se realizando nos outros estados. Isso era uma fonte de estímulo para quem queria. Aqui em Recife, a influência do crítico Fernando Spencer, também cineasta, divulgava muito, como também Celso Marconi divulgava a Jornada de Cinema de Salvador. As pessoas queriam participar, iam, e para participar tinham que fazer filmes.  Eu coloco muito isso e também na Paraíba o problema da universidade que houve com o de Cinema Direto, o convênio com a França gerou uma certa polêmica altamente produtiva. Ao pessoal que era ligado ao Cinema Direto eu colocava numa linha paródica o Cinema Indireto, que é um cinema oblíquo. Questionar  um pouco o perigo de um certo dogmatismo do Cinema Direto. Mas, a Paraíba teve um mérito, um mérito, inclusive, que acho importante, de ter recriado o Cinema Direto, de ter deturpado o purismo do Cinema Direto, a proposta do Cinema Direto.

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Recriação incluindo tudo, aspectos de deturpação, de formação da proposta inicial do Cinema Direto, de uma certa pureza do Cinema Direto. Então, a Paraíba é um negócio... as impurezas paraibanas, as impurezas do “masculino neutro”, como tem as impurezas do branco do poeta Carlos Drummond de Andrade, as impurezas do audiovisual que são as manchas paraibanas, as tintas paraibanas dentro de uma certa “ortodoxia diretivista” por parte dos franceses. E depois, a facilidade de se fazer Super-8, em termos econômicos, é claro que muita gente tinha vontade de fazer 16 mm, 35 mm, terceira dimensão, mas não se tinha grana, não se tinha condições econômicas. Na década de 70 era uma coisa viável, eu pude fazer vários filmes com recursos próprios, com o meu salário de professor, sem ajuda de nenhuma instituição; conseguia tirar do meu salário para produzir esses filmes, quer dizer, entrava na produção atores que nunca ganharam dinheiro comigo, mas alguns técnicos de montagens e cinegrafistas tinham um cachê simbólico que eles pediam, a parte de montagem... não era só o filme virgem não, mas alguns técnicos recebiam, e isso, com meu salário de professor, e hoje em dia a coisa seria muito mais difícil. Estou colocando a Paraíba, mas o intercâmbio entre Recife e João Pessoa é muito grande, sobretudo, por eu transitar semanalmente entre as duas cidades... eu tenho que colocar a coisa do ponto de vista da Paraíba e de Pernambuco também, inclusive retomando aquele casamento tão ideal e tão perfeito que foi o do fotógrafo Rucker Vieira com o Linduarte Noronha, nas origens do Cinema Novo paraibano.
 

Pedro Nunes: Observamos nos filmes paraibanos pioneiros e na segunda geração de cinema uma tradição de cinema com uma perspectiva documental. Neste novo ciclo de cinema produzido na Paraíba você consegue ver um corte nítido entre o documentário e a ficção, ou não?
 
 JMB:  Mais do que um corte, é uma ruptura mesmo, e isso para os defensores de um cinema, de uma linha da pureza documental. Essas pessoas, evidentemente, se sentiam muito incomodadas, eu diria talvez, agredidas. Havia uma tradição sólida, muito forte, uma tradição cristalizada de um cinema feito por cineasta antropólogo ou etnólogo, da linha muito mais Aruanda, da matriz Aruanda do Linduarte... Pois quando surgiu essa coisa ficcional  a abertura  para uma fantasia criadora, a mistura de documento com ficção, gerando ficções mais audaciosas. Isso naturalmente bulia muito com as tradições do documentário não só paraibano, mas nordestino, brasileiro.


 
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Pedro Nunes: As produções independentes em Super-8 tendem para experimentação com inovações da  narrativa.  É  isso que observamos no conjunto de produções emergentes em vários estados brasileiros. No entanto, percebo no conjunto das realizações paraibanas a utilização de códigos convencionais que tomam como modelo o cinema de concepção dominante. Identifico uma ausência de criatividade, falta ousadia para a grande maioria dos jovens da terceira geração. Eu consigo enxergar essa ousadia nos filmes de ficção ou propostas híbridas docuficcionais.
 
 JMB:  A linhagem documental, documentarista, tem as amarras históricas muito nítidas. O documentário faz uma opção, ou certo comprometimento, uma certa amarração histórico-social, ou histórico-sociológica, ao passo que a ficção joga com as asas da liberdade. Embora, toda a ficção reflita um momento histórico. O projeto ficcional é justamente o projeto de jogar com o imaginário. Logo, a palavra que você usou antes, um comportamento mais audacioso, um desafio maior para a parte inventiva, estaria na ficção, embora sem tirar o mérito da criatividade que existe nos documentários. Mas, eu acho que há um apelo mais veemente de identidade criativa na ficção.  O problema mais sério é a partir de quando, por exemplo, Jean-Claude escreveu muito bem, por uma crítica ficcional, que esses territórios de documentário e da ficção já começam a estar muito minados, uma vivência, uma reflexão, não só a vivência, mas uma reflexão metalinguística, coloca muito, sobretudo a contribuição de semiologia e da semiótica.  As análises, assim, freudianas, lacanianas, já mostravam que esses territórios são territórios minados, e que não existem fronteiras rígidas, separando a ficção do documentário. E esse documentário, de qualquer forma, documenta o real, e também o que existe de ficcional na própria intenção ou na própria linhagem do documentarista. Eu acho que é a colocação mais forte a ser feita, justamente isso é uma coisa da década de 70 pra cá, é mostrar que não existe esse purismo documentarista, e que o documentário... ele aparentemente é um documentário, é um reflexo...  Reflexão sobre a realidade, mas tem muita coisa do delírio do autor, do a priori ideológico do autor... ele vai ser a realidade através de uma angulação sociológica (psicologia social) antropológica e isso condiciona a visão dele da própria realidade.  As fronteiras se tornaram muito fluidas, o campo de ambiguidade tende a crescer cada vez mais nessas relações de documentário com a ficção.
 

Pedro Nunes:  Embora eu conheça muito bem o seu trabalho, eu queria que você falasse sobre  os seus filmes e temáticas pertubadores.


 
 JMB:  Considerando num todo, num conjunto, ou num bloco, diria que é a problemática da crítica da cultura. É uma coisa meio pernóstica, mas é uma coisa que a gente tenta exercitar na universidade, que é a coisa da crítica cultural, muito ligada à cultura brasileira, especialmente. Eu procurei mobilizar o audiovisual, especialmente o Super-8, dentro dessa perspectiva de crítica cultural, que em alguns filmes a coisa é bem evidenciada, ela tem um destaque muito... talvez mais do que óbvio, como Palhaço Degolado e Inventário do Feudalismo Cultural, esses dois filmes eu acho que definem bem. Outras Cenas da Vida Brasileira, também. A minha produção paraibana é uma produção muito limitada, são três filmes de mais ou menos 30 minutos, Esperando João,  A Cidade dos Homens e Paraíba Masculina... O primeiro é uma tentativa de me antecipar ao filme da Tizuka Yamasaki sobre Anayde Beiriz, mais uma vez mostra a facilidade do Super-8.

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Na verdade eu assisti a uma palestra de José Jofily no Departamento de Artes e Comunicação; durante a palestra uma professora e ex-aluna nossa, Maria das Graças, fez uma pergunta ao Jofily sobre o problema das ligações daquele assassinato de João Pessoa àquela trama entre João Dantas, João Pessoa e Anayde, se havia um comprometimento ideológico, ou era mais um caso senti-mental, um caso de amor, de uma paixão desvairada. Aquela pergunta, e até a própria notícia de que a Tizuka estava interessada em fazer um filme  sobre a Anayde Beiriz, me levou a ler o livro de Jofily, e de fazer um autodesafio a mim mesmo.  Vamos fazer um filme  antes do filme da Tizuka. É... essa coisa que eu diria assim: o espírito parodístico, a coisa da sátira, da paródia, que a gente gosta de usar muito como instrumental da crítica da cultura. E o que a gente pensou foi o seguinte: dar uma versão pirandeliana da Anayde. Seriam seis pessoas ou sete incluindo a narradora, seriam sete imaginários da Anayde Beiriz, como eu via, e como os autores tinham uma importância muito grande, cada um concebeu a sua Anayde, como o ator Francisco Marto, que pesquisou muito.

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Parece claro que o traço unificador mais genérico da produção de Jomard Muniz de Britto é a ruptura com as esferas tradicionais da cultura e a instituição do sentido do novo como produtor do novo sentido. Há um permanente elogio da experimentação, das vanguardas - embora esse elogio seja problematizado pelas próprias contradições que ele expõe. Trata-se, muitas vezes, de uma espécie de antissaudosismo militante em que o novo se localiza como desafio.

O Esperando João é essa colocação. São três atores e três atrizes, cada um encarnando, corporificando a Anayde Beiriz. É muito como se fosse a ótica da cidade de João Pessoa, através da mulher, da condição feminina. Por isso eu fiquei interessado em fazer dentro deste espírito parodístico inspirado em Fellini de A Cidade das Mulheres, fazer A Cidade dos Homens,  que foi o segundo filme,  mostrando a presença predominantemente  masculina na vida da cidade, desde o amanhecer, os pescadores indo trabalhar, os operários que estavam construindo, o tão controvertido Espaço Cultural, a manhã  na vida da cidade, os pontos que têm um aglomerado masculino maior, bares, Ponto de Cem Réis. E o terceiro é a pretensão de fazer uma síntese do primeiro com o segundo, uma síntese que avançasse um pouco mais. E a partir da música Paraíba Masculina... misturando essa música com uma leitura que faço barthesiana de um livro chamado... Masculino Feminino Neutro.  Eu fiz Paraíba Masculina... E que eu acho que depois o que eu escrevi... (você pega aquela página que saiu na edição de IV centenário da Paraíba, em A União) procurei teorizar mais a minha interpretação da cultura paraibana, dos modos vivenciais paraibanos.
 
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​Pedro Nunes: Eu queria que você fizesse uma leitura geral desse bloco de filmes. Que elementos  você considerou  importante  nesse conjunto de realizações?
 
 JMB:  O grande corte, ou a grande ruptura em relação à tradição anterior do filme paraibano mais contaminado pelo ideal de uma certa pureza documental, foi  justamente essa coisa da fantasia e sobretudo a fantasia erótica, esses filmes no conjunto dinamizavam esse dado da fantasia erótica, o fantasma da fantasia e do imaginário erótico, muito recalcado na província, assim, as pessoas numa leitura mais superficial mais rápida diriam: é o toque do homossexualismo, inclusive gostei de ter criado a expressão “Cineguei”,  mas  no  sentido  do  Nego da Paraíba, do verbo neguei, passado do... Cineguei, quer dizer, várias leituras dessa expressão. Mas não fica  só nesse toque   homossexual,   homoerótico,   é o problema do erotismo num sentido mais amplo, dentro daquela visão mesmo, muito questionada pelos pós freudianos, que colocam essa dimensão da sexualidade como sendo perversa e polimórica. Gostaria de citar,  já  que falei em Freud, uma entrevista recente de Wally Salomão que está dentro deste pensamento,  dentro  da  tropicália,  até essa produção independente, o Wally Salomão disse: “eu quero ser, eu me assumo”. E cita a expressão de Freud:  “O perverso e Polimórico”. A perversão é o dado  polimórico da  sexualidade.


Essa é,  pra  mim,  a  contribuição  mais abrangente da fantasia erótica. Havia também o sociólogo muito contestador, ele quer ser,  sobretudo, antissociólogo, contra os modelos uspianos, ele tem uma formação uspiana, mas tenta passar um pouco de cuspe nessa formação dele, que é o Gilberto Vasconcelos. Ele viu o filme do nosso caro amigo Manfredo Caldas, Cinema Paraibano - Vinte Anos, que é uma antropologia muito bem realizada, que tem um dado muito importante, inovador, joga homenagem a Dziga Vertov... o Gilberto Vasconcelos assistindo ao filme e depois a um debate que eu fiz na sala de aula, fez o seguinte comentário: “mas o cinema paraibano não tem um beijo!”. Quer dizer que a sexualidade anda muito reprimida, opinião do Vasconcelos, um sociólogo antissociologal, um ensaísta da cultura. Eu jogo isso, os dados do Freud, do Wally Salomão,  do  Vasconcelos, misturando no caldeirão dos mitos de Braúlio Tavares, pra ver isso, essa coisa, esse dado novo, que está muito ligado a toda essa produção cultural independente, esse aflorar, deflorar, transpirar a sexualidade no sentido mais aberto, mais ambíguo, do que eu chamaria da perversão, no sentido positivo e da transgressão e da polimoria.
 

Pedro Nunes: Por que a preocupação por parte dos realizadores em abordar a questão da sexualidade? Existe um dado importante, pois são esses filmes, que já conseguem atingir um grande público, seu filme Esperando João... e um exemplo disso visto que foi apresentado  em quatro sessões. É uma coisa interessante, muito importante, porque até então, havia uma letargia,  e mesmo os outros filmes num estilo mais documental, no sentido de registrar a realidade, conseguiam certo público, mas isso em nível de trabalhos mais ligados à comunidade, aos movimentos de bairro... Mas os filmes que abordam a sexualidade extrapolam isso aí, criou-se em nível de público também.
 
 JMB:  Esses filmes que estão mais ligados às comunidades são um cinema que pretende  ser militante, mas é um cinema de assistencialismo social, é o problema do cinema como serviço social. Agora, o que acho dentro dessa temática nova dos curtas paraibanos, não tenha a menor dúvida, que não é apenas por motivação psicológica-sociais, mas em termos de um marco objetivo, é o filme Closes, que por coincidência foi realizado pela pessoa que está me entrevistando agora. O grande rebuliço na província de João Pessoa foi realizado pelo filme Closes. Era a temática nova, a problemática nova, em termo de sexualidade, pela beleza formal do filme.  

 

O filme tinha um charme, um encantamento visual muito grande. Isso foi um grande motivo para acender a chama dessa sexualidade recalcada nos filmes. Coloco isso objetivamente, foi Closes. Todos os meus filmes são devedores do filme Closes. Acho que os filmes de Henrique Magalhães, do Lauro Nascimento, estão dentro dessa linhagem, a partir do que Pedro Nunes fez.  Não era somente o filme exibido, era todo um movimento antes de divulgação, de mobilização da comunidade, o interesse, os debates em rádio, na universidade, no DAC, esse circuito de divulgação, essa animação cultural, que o filme Closes promoveu, propiciou, e que nós pegamos, somos os afluentes dentro desse movimento da animação cultural closística.
 
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Pedro Nunes: Quanto  à  veiculação  de  filmes,  qual o   papel   da   animação   cultural,   enquanto fator decisivo para o debate dessas realizações?
 
 JMB:  O fato de estarmos ligados à universidade, as pessoas todas que participaram desse movimento de curta-metragem, são pessoas ligadas, direta ou indiretamente,  na condição de  aluno-professor,  de professor-aluno, ao Departamento de Artes e Comunicação da UFPB. Nós vivemos o DAC na época das produções, um clima de animação cultural muito grande. Essa animação cultural pré-existia aos filmes.  O próprio DAC era sinônimo de alguma coisa bendita (por que não maldita?) dentro da universidade, um corpo estranho dentro da universidade. Toda essa dinâmica, essa mobilização, filhos bastardos do DAC. Então  vejo essa animação cultural como um projeto muito intencional e não apenas como uma missão pedagógica, mas como um trabalho maior uma dinâmica dentro da comunidade.

 

O importante é fazer a justiça histórica. O trabalho nosso é de resgatar, não o passado glorioso ou esses momentos culturais, mas resgatar a nossa contemporaneidade, a memória  do presente, a memória viva do presente.  O teu trabalho  é importante enquanto isso. Não esperava fazer uma revisão histórica desses filmes daqui a dez ou vinte anos não. É na linha da tese, da dissertação de Carlos Messeder, Retratos  de  Época,  que reflete  o presente, é a contemporaneidade em Closes, o Closes da contemporaneidade.
 

Pedro Nunes: Nós tivemos alguns cineclubes, não de forma  tão organizada como nos anos 1960, mas tivemos  alguns cineclubes como:  Cartaz de Cinema, Filipéia, SESC, DCG. Esses cineclubes e as Mostras de Cinema tiveram um papel importante nes se terceiro movimento de cinema.
 
 JMB:  Não tenho a menor dúvida. Mas depois de ficar tanto tempo sem uma prática de debate, as pessoas, os jovens, a geração famosa do AI-5... esse pessoal ainda está carecendo muito de prática de debate, do que se fazia na década de 1960, os chamados cine-fóruns, havia uma regularidade, um hábito de se debater. Hoje em dia, na sala de aula para fazer um debate, o pessoal está desacostumado. Esse movimento de cineclubismo que surgiu, mesmo espaçadamente, de uma maneira mais informal do que aquele cineclubismo institucionalizado das décadas de 1950 e 1960, foi um fator muito bom para as pessoas começarem a falar, a perder o medo, perderem o acanhamento.

 

Hoje em dia tem alunos que dizem: “Que bom, professor, que a gente teve a oportunidade de falar, quando eu comecei a falar estava todo empulhado”. Inibido não, empulhado mesmo. E com a prática, os debates que aconteceram, a imprensa... O papel da imprensa, especialmente na Paraíba, foi muito forte, a imprensa dava uma força muito grande, havia um espaço muito aberto para o que a gente chama de animação cultural. Pessoas como Carlos Aranha, Walter Galvão, participaram muito dessa polêmica cultural, desse debate cultural. Animação Cultural é tudo isso; é você ter espaço no rádio, na imprensa, na imprensa governamental do jornal A União,  que abre para propostas novas. É a universidade como um polo mais catalisador de tudo isso, porque essas pessoas estão ligadas diretas ou indiretamente a uma convivência na universidade.  A crítica cultural passa pela própria universidade, ela é, sobretudo, uma autocrítica cultural.
 
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Pedro Nunes: A Censura Federal atuou  com bastante veemência em algumas ocasiões com agentes federais armados  com metralhadoras em punho, a exemplo da dispersão da II Mostra de Cinema Independente  que  coordenei  em  João  Pessoa no ano de 1981, ou mesmo atuação da censura por ocasião do lançamento do filme Closes, ou mesmo do seu próprio filme Paraíba, Masculina Feminina Neutra. Eram ações intimidatórias com demonstração de força. Como você analisa essas intervenções da censura?
 
 JMB:  Realmente. A censura estava sendo competente, estava realizando seu papel. Se existia uma censura ela tinha que se exercitar como censura. Você tinha que mostrar o filme  antes. A censura era arbitrária e tinha que ser arbitrária, porque a época era disso, de arbítrio. Essa pressão da censura, mais do que a pressão, a repressão da censura, era o papel que ela estava representando, era uma performance censória típica do regime militar. Ela tinha que ser competente, mostrar que  era  competente,  que  era  exigente e criava casos. O papel da censura era reprimir. Diferente de como se coloca agora, desse movimento de anistia e tudo mais. Um personagem... eu acho que o Dr. Pedro, que comandava essas ações, merecia até um filme, um vídeo sobre ele. E não somente essa censura institucionalizada, a censura formal, mas também alguns jornalistas, não vamos dizer que vivíamos num mar de rosas não, alguns jornalistas conservadores, retrógrados, xenófobos, fizeram movimentos mais impetuosos, mais virulentos, mais sanguinolentos do que a própria censura, o Wellington Aguiar não me deixa mentir, que fez um trabalho de uma crueldade censória absurda e absoluta... notável!
 

Pedro Nunes: O Cinema Direto enquanto uma das atividades do Núcleo de Documentação Cinematográfica da UFPB... Como você analisa o Cinema Direto tendo se distanciado, já um pouco mais...
 
 JMB:  Por mais que os franceses e alguns paraibanos afrancesados desejassem manter uma idealidade rigorosa ao projeto do Cinema Novo Jean Roucheano, a província paraibana era tão “torta”, troncha e distorcida que ela distorceu esse projeto logo no começo. Quando as pessoas defendiam, elas já defendiam sabendo que era uma constatação, uma impossibilidade de se fazer Cinema Direto na Paraíba. Era um projeto impossível, ele tinha que ser renegado, é esse comportamento antropofágico. Era uma compensação da falha do projeto, porque era um projeto manco, e à medida que, manco como o Jango era manco, ele pendia para um lado, e à medida que ele tinha que ser realizado na  Paraíba,  ele já começava a ser abortado, a ser visto... A proposta do Cinema Direto é uma proposta que vai sendo antropofagizada, quer dizer, os paraibanos comendo os franceses, devorando os franceses. O Cinema Direto começou a ser minado: contaminado pelo vírus paraibano,  pelas negações, pelas negatividades paraibanas. Dá para escrever uma tese: “Como o Cinema Direto se torna Indireto na Paraíba”.

 

Como o Cinema Direto entrou nesse sistema antropofágico de deglutição, de devoração de seus próprios deuses e mitos. Como ele foi repensado, questionado na Paraíba, como ele possibilitou um movimento paralelo a ele, de pessoas que estavam ligadas a ele, mas que faziam a sua antítese. Foi bom. Foi um movimento vivo, as picaretagens são muito comuns no campo da cultura, os jogos de interesses, as facilidades, as barganhas. Se não existisse essas picaretagens não existiria cultura, a cultura ficaria  numa redoma, sacrificada, faz parte da vida cultural esses jogos de interesses, essas ligações perigosas entre o artista e o poder... O artista querendo fazer uma coisa independente, mas ele está atrelado ao esquema, à universidade, ao poder. E o negócio para a província é um negócio fascinante. A Europa, o mito da Europa. Esse convênio do NUDOC com o Cinema Direto francês possibilitou esse frenesi cultural de pessoas que ficavam:  Vamos ver como é a Europa, Paris cidade luz, vamos ter transas europeias, vamos conhecer os homens e as mulheres francesas.

 

 

 

 

 

 


 
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Pedro Nunes: Quer dizer que você postula que houve uma deformação da proposta, da matriz do que seja Cinema Direto e ao mesmo tempo  isso despertou  um desejo, uma fascinação da questão de ir a Paris?
 
 JMB:  É difícil pra eu comentar mais porque não fui a Paris, o problema mais sério é esse, mas é bom ouvir as pessoas que foram, até mesmo mais de uma vez. As pessoas que participaram do projeto mais diretamente é que têm um melhor depoimento a dar. Eu, numa visão vulgarmente  chamada  de  despeitada ou uma visão dos marginalizados, dos não beneficiados, diria que esse pessoal que teve oportunidade  de ir à França, uma oportunidade  muito boa, inegavelmente de intercâmbio cultural, de conhecer, de atualização, esse pessoal na volta não colocava muito, a não ser para grupos pequenos de amigos, o que eles tinham aproveitado lá, acho que deveria participar do convênio, de qualquer convênio, as pessoas na volta dar uma geral do que viu, isso é importante, as pessoas só falavam quando eram solicitadas, já devia fazer parte do esquema de trabalho.


Agora, sobre a produção do Cinema Direto, era uma coisa tão variada, é difícil a gente colocar, inclusive, o problema mais sério era a deficiência técnica dos filmes, não que eu esteja defendendo um tecnicismo, mas o nível era bem elementar, parece que o curso não funcionava bem, havia muita pobreza técnica, e não uma pobreza intencional, uma pobreza por falta de habilidade, por carência, eu sentia muito isso; o som direto não funcionava; em princípio qualquer coisa com som direto era Cinema Direto, usou som direto é Cinema Direto, não é. Os professores que iam ou vinham não satisfaziam não, o problema de língua, de linguística, um negócio muito fraquinho em termos de criatividade no plano da técnica, de um modo geral.

 

E esse sistema, esse exercício de colocar logo as pessoas com a câmera é bom, isso quando você tem filme,  é o de aprender fazendo, mas eles desmistificavam o problema técnico, é aquela coisa muito francesa, de uma certa linha francesa, de um certo enciclopedismo de uma camada de cineasta faz tudo, e eu acho que era muito papo furado, e o que sempre caracterizou o cinema é ser uma arte coletiva, toda angústia de criação é uma angústia compartilhada, uma angústia coletiva, esmo o cinema que não seja industrial, o cinema Udigrudi, o cinema é sempre uma proposta de criação coletiva, então por que esse negócio de uma  só pessoa fazer tudo? Isso é uma das bobagens do Cinema Direto, o camarada ser o autor da ideia, o diretor, o fotógrafo, o cinegrafista,  o montador,  o editor do filme,  eu acho isso uma bobagem, porque pode ser o mito do Chaplin, o gênio da criação, mas isso pode funcionar ou não, pode ser o Cinema Direto, Indireto, Oblíquo, mas o cinema é basicamente uma arte coletiva.


E essa coisa da pessoa fazer tudo como aprendizado é interessante, faz parte de certa inclinação, pessoas que gostam de fazer montagens outras não, pessoas que gostam de trabalhar na trilha musical, embora que no Cinema Direto não tenha esse negócio de trilha musical. Em síntese, existia uma certa bitola, não no sentido da bitola Super-8, mas a bitola ação, ou um certo padrão, o que era Cinema Direto, por mais que houvesse essa deturpação, no bom sentido que estou falando, essa antropofagização do Cinema Direto Francês, mas as pessoas tinham na cabeça um fantasma, o Cinema Direto é isso, um certo modelo prejudica, castra a criatividade. Um pessoal jovem querendo ousar mais, mas no modelo do Cinema Direto havia aquela pressão em cima do que era direto, o que não era direto, e tem alguns que fizeram o Anticinema Direto, o não Cinema Direto. Mesmo assim, foi tanta coisa feita que eu não sei se conheço todos os filmes.
 

Pedro Nunes: Considerando que essas realizações em sua  maioria  foram  feitas  em  Super-8, que perspectiva se apresenta ante o surgimento de uma nova tecnologia que é o vídeo?


 JMB:  O que muita gente está fazendo é transcrever esses filmes em vídeo, em que se começa a surgir um circuito de vídeo, e eu confesso, não tenho me motivado, não só pela falta de grana, mas por preferir fazer filmes novos, do que copiar. O vídeo agora está desempenhando o papel do Super-8, o fator econômico mais uma vez, a facilidade de se fazer Super-8 é relativa porque o equipamento do vídeo é muito caro, e você tem que depender de um amigo, de um grupo, mas no vídeo a fita é muitíssimo mais barata, a dinâmica é outra. Tudo pra mim é cinema, como dizia Glauber Rocha: tudo é produto audiovisual, cinema, TV, vídeo, Super-8, é ridículo essa coisa que teve de muita gente não considerar o Super-8 como cinema, isso é um preconceito absurdo. Os grandes cineastas do mundo usam Super-8. É a possibilidade de se fazer cinema mais experimental, tanto curta-metragem como bitola Super-8 ou vídeo, você tem um campo mais livre para experimentação.
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FONTE
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BRITTO, Jomard Muniz.
Entrevista concedida a Pedro Nunes. Recife, 06 out.1985.

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